terça-feira, 28 de agosto de 2007

Só para os fortes

Brasília de agosto não é pra qualquer um. Pra ser brasiliense do peito, é preciso ter o fôlego e a resistência dos povos do deserto pra enfrentar o sol de agosto sem perder a suavidade. Pra sair de casa antes do sol nascer e cobrir os sapatos com saco plástico pra conseguir mantê-los razoavelmente limpos e lustrados até chegar no trabalho. Pra esperar o ônibus em pontos de ônibus desmazelados, pra atravessar as longas vias e os imensos canteiros sem uma árvore pra nos proteger. Pra enfrentar o sol que tortura nossos olhos.
Brasília de agosto é toalha molhada na cabeceira da cama, é sentir faltar o ar na madrugada, é tomar cerveja e morrer de ressaca por conta da falta de umidade que nos rouba os líquidos. É ter a pele trincada, os cabelos ariscos, é saber que não vai chover tão cedo e que não há nada que mude isso. Pouco importa se aqui é a sede do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, das maracutaias, dos lobies, dos grampos, dos interesses escusos, dos poderosos em geral. Se é cidade planejada, se é patrimônio da humanidade. Nada disso muda o clima. Estamos todos subjugados à secura, inapelavelmente.
Brasília de agosto é de uma beleza avassaladora que existe, graças aos céus, para além das miudezas dos homens. É uma cidade transparente, reluzente e desnuda. Brasília de agosto não guarda segredo de ninguém, expõe as tripas de todos nós, nos deixa nus de alma sob o sol invasivo e impudico. Não tente ser melancólico em agosto em Brasília porque não vai encontrar nenhum lugarzinho pra se esconder da devassa. Ninguém consegue se esconder sob o céu devastador de Brasília.
É linda a Brasília de agosto. As árvores nuas de folhas e de frutos, galhos desenhando uma arquitetura ao mesmo tempo limpa e intrincada. Caliandras esplendorosamente vermelhas brotando na secura improvável. Ipês estourando de amarelo, paineiras fazendo colchões de paina no chão. Lacerdinhas enroscando a poeira do chão ao mais alto do céu. Nenhuma sombra, nenhum esconderijo, nenhum descanso. Brasília de agosto é a alma escancarada.
Uma fagulha que seja se transforma num grande incêndio. Brasília de agosto entra em combustão, explode, venta raivosamente, grita, esperneia, mostra que não há poder maior que o seu. Avisa que todo e qualquer outro poder que aqui se instala e nos ilude é vão diante da força da natureza que é Brasília no período de seca.
Brasília de agosto entra em setembro, se banha de cinza, nos suja de poeira, faz a gente pedir perdão para os crimes que cometemos, os que não cometemos e os que ainda vamos cometer.
Brasília de agosto inventa uma nova dimensão — expande o espaço físico, faz a arquitetura moderna dançar aos nossos olhos. Deixa o asfalto ondulante, a grama amarela, quase raivosa, as árvores arredias e os homens espantados diante de tanta força da natureza.
Portanto, fujam os medrosos porque em agosto Brasília não perdoa os hesitantes, os omissos, os titubeantes.
Brasília em agosto, com a licença de Euclides da Cunha, é para os fortes.