terça-feira, 28 de agosto de 2007

Só para os fortes

Brasília de agosto não é pra qualquer um. Pra ser brasiliense do peito, é preciso ter o fôlego e a resistência dos povos do deserto pra enfrentar o sol de agosto sem perder a suavidade. Pra sair de casa antes do sol nascer e cobrir os sapatos com saco plástico pra conseguir mantê-los razoavelmente limpos e lustrados até chegar no trabalho. Pra esperar o ônibus em pontos de ônibus desmazelados, pra atravessar as longas vias e os imensos canteiros sem uma árvore pra nos proteger. Pra enfrentar o sol que tortura nossos olhos.
Brasília de agosto é toalha molhada na cabeceira da cama, é sentir faltar o ar na madrugada, é tomar cerveja e morrer de ressaca por conta da falta de umidade que nos rouba os líquidos. É ter a pele trincada, os cabelos ariscos, é saber que não vai chover tão cedo e que não há nada que mude isso. Pouco importa se aqui é a sede do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, das maracutaias, dos lobies, dos grampos, dos interesses escusos, dos poderosos em geral. Se é cidade planejada, se é patrimônio da humanidade. Nada disso muda o clima. Estamos todos subjugados à secura, inapelavelmente.
Brasília de agosto é de uma beleza avassaladora que existe, graças aos céus, para além das miudezas dos homens. É uma cidade transparente, reluzente e desnuda. Brasília de agosto não guarda segredo de ninguém, expõe as tripas de todos nós, nos deixa nus de alma sob o sol invasivo e impudico. Não tente ser melancólico em agosto em Brasília porque não vai encontrar nenhum lugarzinho pra se esconder da devassa. Ninguém consegue se esconder sob o céu devastador de Brasília.
É linda a Brasília de agosto. As árvores nuas de folhas e de frutos, galhos desenhando uma arquitetura ao mesmo tempo limpa e intrincada. Caliandras esplendorosamente vermelhas brotando na secura improvável. Ipês estourando de amarelo, paineiras fazendo colchões de paina no chão. Lacerdinhas enroscando a poeira do chão ao mais alto do céu. Nenhuma sombra, nenhum esconderijo, nenhum descanso. Brasília de agosto é a alma escancarada.
Uma fagulha que seja se transforma num grande incêndio. Brasília de agosto entra em combustão, explode, venta raivosamente, grita, esperneia, mostra que não há poder maior que o seu. Avisa que todo e qualquer outro poder que aqui se instala e nos ilude é vão diante da força da natureza que é Brasília no período de seca.
Brasília de agosto entra em setembro, se banha de cinza, nos suja de poeira, faz a gente pedir perdão para os crimes que cometemos, os que não cometemos e os que ainda vamos cometer.
Brasília de agosto inventa uma nova dimensão — expande o espaço físico, faz a arquitetura moderna dançar aos nossos olhos. Deixa o asfalto ondulante, a grama amarela, quase raivosa, as árvores arredias e os homens espantados diante de tanta força da natureza.
Portanto, fujam os medrosos porque em agosto Brasília não perdoa os hesitantes, os omissos, os titubeantes.
Brasília em agosto, com a licença de Euclides da Cunha, é para os fortes.

domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 1

Ernandes & Mariana

Andarilhos acompanham a correnteza das estradas. Os passos ritmados, o calor do corpo, o sangue veloz, a paisagem sempre outra, os turistas, os ciganos, os hippies, os caminhoneiros, os outros andarilhos. Um viver sem espera. Um ir ao encontro não se sabe do que nem para quê. Ir tão-somente.

Ernandes, 74 anos, é andarilho desde os 16. Começou a andar com um amigo farmacêutico que lhe convidou para sair estrada afora. Menino sem estudo, filho de pai sargento e alcoólatra,14 irmãos, aceitou de pronto. Fizeram o caminho do Rio a Porto Alegre. Não demorou para Ernandes perceber que podia trilhar uma rota de sobrevivência que se não era de todo promissora pelo menos lhe permitia experimentar geografias diferentes, passo a passo.

Andarilhando, conheceu as grandes cidades brasileiras de Brasília para baixo. Alcançou a fronteira com o Uruguai. Numa dessas andarilhagens, 40 anos atrás, indo de São Paulo a caminho do Rio de Janeiro, Ernandes viu ao longe uma moça miúda, meio cambaleante, vindo na sua direção. Era uma andarilha, logo percebeu pelas roupas andrajosas. Mais de perto, pôde ver um rosto delicado, de traços suaves, longos cabelos de cachos graúdos, pequena como uma menina. Mais de perto ainda, percebeu que ela estava sangrando "por baixo". O sangue descia pelas pernas, mas o que ela pediu a ele foi comida."Me arruma o que comer", disse, com sua voz de menina.

Ele abriu a matula e lhe entregou um pão com carne que tinha guardado para o almoço. Ela comeu com a avidez de esfomeada, sem se importar com o sangue que continuava a escorrer pelas pernas.Os dois de pé no acostamento da Via Dutra, à época uma rodovia recém-inaugurada. Por uma razão inexplicável, a inexplicável razão de um amor que nasce, Mariana, à época com 28 anos, percebeu que ali estava a âncora do seu viver. "Posso ir junto com você?", perguntou ela a Ernandes. Ele olhou para os cachos garbosos da moça desamparada e quis tê-los sempre por perto. "Pode", respondeu.

E seguiram rumo ao Rio para onde ele ia e de onde ela vinha. Na verdade, Mariana nem sabia ao certo para onde ia, ia tão-somente. Conseguiram chegar à casa da mãe de Ernandes, no Rio. Ela e as irmãs cuidaram de Mariana. (Ela nunca contou, e talvez nem saiba, a razão do sangramento. Se era a sangria mensal das mulheres ou se um machucado, uma violência). Do passado de Mariana também pouco se sabe. Só que ela nasceu em Piraju, Minas Gerais. Que foi expulsa de casa porque jogava pedra em todo mundo.

Continuaria jogando até hoje não tivesse encontrado Ernandes. Desde então, os dois andarilhos cruzam o Brasil do Centro-Oeste para baixo. Mariana descobriu no andarilho de rosto anguloso, ombros largos e mãos carnudas um ancoradouro para o descanso de suas perturbações. Perto dele, ela se acalma. Longe dele, ela atira pedras. "Até hoje", conta ele.

Quando souberam que uma nova capital estava sendo construída dentro do território goiano, para cá vieram. E daqui só saíram para novas andanças. Tiveram um filho, Sebastião, que há 15 anos cumpre pena de 22 anos na Papuda por latrocínio. "Ele era igual a nós, mas os colegas fizeram a cabeça dele e ele ficou atrapalhado da idéia". O casal espera a liberdade do filho para, juntos, deixarem a cidade. Não sabem para onde.

Enquanto isso, Ernandes e Mariana acampam todas as noites em frente ao Hospital de Base, na esquina do Eixinho com a Rua das Farmácias. De onde estão, vêem o Banco Central, a sede do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Todo seu patrimônio cabe num carrinho de mão que ele construiu para carregar sua protegida. Nele, alguns cobertores, duas cadeiras de plástico, uma garrafa térmica, um vasilhame que armazena dez litros de água, duas bonecas velhas, meia dúzia de peças de roupa, dois chinelos e uma lona que uma madame lhes deu faz um ano. No bolso dele, uma carteira velha com os documentos de identidade dos dois.

A rotina começa com o barulho dos carros e dos ônibus. Enquanto Ernandes desmancha a barraca, Mariana fica sob o sol brincando com as duas bonecas. Depois, ele vai ao quiosque comprar café com leite, biscoito e refrigerante. Encharcam-se de refrigerante. Ficam por ali esperando os trocados do dia até chegar a hora do passeio pelo Setor Comercial Sul. Quando começa a anoitecer, Mariana fica ansiosa para voltar ao gramado do Hospital de Base. Precisa alimentar a gata que acabou de ter filhotes. "Ela dá leite pra gata, pra gata criar leite pra dar para os filhotes", diz Ernandes, como quem conta uma grande história. E por que não?

Mariana padece de uma sífilis, diz Ernandes. "Ela está com o sangue sujo". Precisa de cuidados, mas todas as vezes que é internada no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) "querem pôr ela no isolamento pra ela morrer",diz ele. "Não me dão comida, nem água, nem banho", conta ela. Nem em abrigo Ernandes se sente seguro. "Quando eu saio, ela pula no pescoço de todo mundo." Mariana tem dificuldades para articular as palavras, mas o pouco que consegue falar é sempre uma repetição do final das frases de Ernandes. Se ele diz: "O sol está de matar, vamos embora mais cedo. Ela repete: "Vamos embora mais cedo", acenando a cabeça de cima para baixo, em sinal de concordância absoluta com o seu eterno protetor.

Quando vai chegando o meio-dia, o casal sai do gramado em frente ao Hospital de Base e desce em direção à W-3Norte. Ernandes monta um estofado de cobertores, inclina o carrinho de mão, põe uma cadeira para servir de degrau e segura a mão de Mariana para que ela possa subir no carrinho. Seguem até o gramado ao lado do ponto de ônibus do Setor de Rádio e Televisão Sul. Ele põe duas cadeiras no chão e os dois ficam lá até o final da tarde, esperando a ajuda dos passantes. De vez em quando, ele comenta como foi o almoço, que a carne estava dura, que tinha pouco feijão. Ela reclama de dores nas costas. Ficam em longos silêncios até que chega a hora de voltar para casa, para o gramado do Hospital de Base. Ela sentada no carrinho, ele puxando com os ombros e os braços todo o seu patrimônio material e afetivo.

Amores Possíveis 2

Babi & Emanuel

Então Babi tomou o caderno das mãos de Emanuel, encostou-se numa parede ao lado. Ela em pé. Ele sentado no banco da escola. Era com implicância que se mantinham um perto do outro, todos os dias, implicantemente. Com a mesma birra infantil, ela lia os poemas sem dar bola para os apelos dele, que pedia: "Me devolve", "me devolve". (Emanuel é surdo, mas fala, foi oralizado. Aprendeu as palavras sentindo a vibração das cordas vocais).De repente, Babi parou, olhou para Emanuel e desvendou um bom pedaço de sua alma, da solidão de um humano que nasceu com um sentido a menos, o da audição. Ali acabou a cisma. Emanuel entendeu só de olhar no olho dela.

Desse diai em diante, tomaram o rumo da amizade. Já fazia dois meses que eles brincavam de ter antipatia um pelo outro. Brincadeira misturada com verdade, não sabiam bem ao certo, mas isso nem os incomodava, porque de todo modo era bom estar ao lado um do outro, coisa que eles também não se davam conta.

Cinco meses antes, eles tinham se cruzado e ela tinha odiado ele, e ele tinha achado ela "gorda, feia, que se acha". Foi assim: Babi tinha um amigo muito próximo cuja namorada morria de ciúmes dela. Insistia em conhecê-la, mas o encontro nunca dava certo. Até que a namorada ciumenta terminou o namoro. O moço abandonado pediu ajuda a Babi: "Vamos lá na casa dela, diga a ela que não temos nada, somos só amigos". Foram e quem os recebeu? Emanuel, irmão da ciumenta.

Nas três vezes em que o namorado abandonado procurou a ex-namorada, Babi sempre ao lado, foram recebidos por Emanuel, com seu jeitão sério, sua voz grossa e rouca, suas poucas palavras. De todas as vezes, Babi o odiou. "Esse cara não fala, troveja", disse ela para o amigo. (Até então, ela não sabia que ele era surdo).

Três meses mais tarde, início do ano letivo de 2000, Escola Técnica de Brasília, período noturno, 4º semestre do curso de informática industrial, turma B. Esbaforida e atrasada, Babi entra na sala de aula. Senta-se na primeira cadeira. Logo está brincando com a caneta entre os dedos, malabarismo de garota buliçosa. Minutos depois, percebe que o estranho a seu lado começa a fazer os mesmos movimentos, numa imitação implicante e inexplicável. Era Emanuel que, movido por um impulso desconhecido, decidiu atazanar a recém-chegada. Já tinham se visto, mas não se reconheceram. (Ou se reconheceram, sem saber. Nunca se sabe). Daí pra frente, provocavam-se todas as noites.

Até o dia em que Babi tomou o caderno de Emanuel e leu seus poemas. Ela acreditava que eles eram somente amigos. Ele percebia em si mesmo o desejo de um homem por uma mulher. Sempre juntos no meio da turma, mas sem nunca deixar de implicar um com o outro — um jeito sem jeito de dizer ‘você me interessa’, ‘estou te vendo’, ‘preste atenção em mim’. Nem ligavam para o que dizia a porteira da escola, Cida: "Isso ainda vai dar em namoro". Uma colega de turma também já tinha percebido algo mais entre o céu e a terra: "Vocês se tocam demais".

Chegou o carnaval. Babi foi para um retiro espiritual. Um dos exercícios finais era escrever uma carta a alguém querido para lhe dizer coisas que a gente sempre deixa para depois, mas muitas vezes o depois nunca chega. Babi nem precisou pensar. De relâmpago, escolheu Emanuel. Pôs no papel: que havia percebido que gostava muito dele, que pedia desculpas pelas brigas, que sentia muito a falta dele… Mas preferiu escrever outras três cartas para outros três amigos, de modo que a escolha não parecesse tão flagrante.

Boba dela, porque Emanuel percebeu que ali havia terreno para o amor. Porém, foi sábio. Não teve pressa. Foi se aproximando aos poucos. Nem precisou de muito esforço, é verdade. Os apaixonados ou os a caminho disso estão imantados — ímã atraindo um para o outro a todo instante, longe ou perto. Houve um dia de trabalho em grupo que os dois se juntaram a uma turma maior, seis ou oito, não se lembram ao certo. Sentaram-se numa longa fila horizontal, paralela ao quadro-negro e ficaram coladinhos um no outro, carteira com carteira. Mais coladinhos que o normal. A carteira para canhotos onde Emanuel se sentava deixava sua perna livre para se encostar por inteiro na perna da destra Babi.

Já era namoro, mas eles ainda não sabiam disso. Até que uma noite, tacitamente, os dois ficaram na sala de aula. Emanuel já tinha decidido abrir o jogo. "Eu sabia que, se demorasse mais, perderia a oportunidade. Mas se eu fosse muito rápido, ela ia sair correndo. Pensei: vou me aproximar. Se ela me empurrar, nunca mais falo com ela. Se ela disser que não, continuamos amigos. E se ela deixar…" Brincavam de jogo-da-velha. Babi fazia a sua jogada no quadro-negro, quando Emanuel foi-se aproximando vagarosamente. Olho no olho. Quando o corpo dele estava a palmo e meio do corpo dela, Babi olhou para a porta de saída, à direita. Rapidamente, ele pôs a mão no quadro, linha paralela ao chão, fechando assim as possibilidades de fuga. Babi olhou para a direita, Emanuel pôs o outro braço. Pronto, a moça estava cercada, contida, dominada, sem saída. Ele então aproximou-se até encostar seu corpo no dela. Não havia mais saída, nem ela queria. Abraçaram-se, beijaram-se.

Era uma sexta-feira. Não se viram no final de semana. Na segunda, Babi não sabia como se comportar. E se tivessem somente ficado? Hoje, Emanuel indigna-se com a dúvida: "Se eu quiser ficar com alguém, fico com objeto. Se eu quiser uma coisa pra me satisfazer, vou a uma padaria e compro". (Ah, meninas, vejam como Babi é uma moça de sorte).

Bárbara Angélica de Jesus Barbosa tem 28 anos. Joaquim Emanuel Leitão Barbosa, 26. Ele é programador de computador. Ela, técnica publicitária e intérprete de libras. São estudantes universitários, ela, de Letras-Tradução, ele, de Sistemas de Informação. Babi aprendeu a linguagem dos sinais para ser intérprete do marido quando ele não consegue decifrar a linguagem labial. Conversam o dia inteiro pela internet — já que ele não usa o telefone. Com ele, ela aprendeu a ouvir, a aceitar melhor as diferenças, a ter paciência com o outro. Ele encontrou a mulher que o enxergou por inteiro, até no que a surdez escondia.

A aliança dos dois tem inspiração medieval: uma trança de dois fios de ouro em fino leito também de ouro. A qual será acrescentado um fio a cada cinco anos. Ele a protege com seu coração de homem e ela, com seu coração de mulher. Parece fácil e óbvio, mas não é.

Amores Possíveis 3

Dudu &Cida

Especial é sinônimo de incomum, invulgar, singular. Singular é sinônimo de peculiar, raro, ímpar, particular, único. Dudu e Cida são portadores de necessidades especiais. Têm leves comprometimentos mentais, mas nada que os impeça de ter autonomia para administrar a própria vida. Não o fazem com a suposta eficiência e desvelo dos que se consideram plenos de capacidade mental. São singulares no seu modo menos automático de responder ao mundo. A voltagem é menos acelerada, mas a sintonia pode ser perfeita. O encontro de Eduardo Luiz, 35 anos, e Maria Aparecida, 25, é isso: uma delicada combinação de dois seres muito particulares.

Conheceram-se há quatro anos, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) da 712/912 Norte. Ela, aluna. Ele, funcionário, ex-aluno, ex-aprendiz. Uma aproximação de poucas palavras. Um dia, no descanso de uma hora depois do almoço, Cida estava deitada no banco da escola, de olhos fechados para sonhar seus três sonhos preferidos. Alguém lhe deu um selinho. "Quem me beijou?", perguntou às amigas que estavam por ali. "Foi o Dudu. Beijou e saiu correndo", respondeu uma delas. Dudu, Cida e seus amigos e colegas da Apae são assim: comoventemente infantis.

Muitos dias e alguns beijinhos depois, Dudu pediu Cida em namoro. "Quero não", respondeu a moça. Até então, o rapaz dos beijos roubados não a atraía. Cida estava mais preocupada com a própria vida e a de sua família. Pensava na mãe, de 64 anos, e na irmã de 20, as duas também portadoras de necessidades especiais. A irmã, Maria de Jesus, com um comprometimento mental maior, como se diz no jargão médico. Francisca, a irmã mais velha, não herdou nenhuma deficiência.

O beijoqueiro Dudu teve meningite na infância, que lhe deixou sintomas para toda a vida. A fala é vagarosa, a dicção, de menino. Vivia num quarto nos fundos da casa de um irmão na Ceilândia. Na Apae, aprendeu a ler, a escrever e a se preparar para o mercado de trabalho. Conseguiu emprego na própria instituição: lava os banheiros e limpa as salas de aula. Antes, tinha sido caseiro e lavador de carro. Na Apae, ganhou carteira assinada. Pronto. Estava na hora de ter a própria família.

"Achei ela bonita", diz Dudu, olhos sempre inquisidores, sorriso de menino e persistência de apaixonado. Todos os dias, no horário de almoço, ele tentava se aproximar de Cida, mas ela repetia: "Quero não". E ele insistia: "Ainda vou namorar você". Esperava a mulher de seus sonhos deitar-se no banco da escola, na hora do lanche, e dava-lhe mais um beijinho. Tantos foram que Cida fechava os olhos só para esperar o beijo. "Aí, fiquei pensando nele. Pensava nele direto, o tempo todo". No Dudu, não somente nos beijos.

De algum modo, Dudu percebeu que estava no caminho certo. Arriscou-se um pouco mais: pediu endereço e telefone e, surpresa das surpresas, foi atendido. QR 209, conjunto tal, número tal, Samambaia Norte. Não esperou nem um fim de semana a mais. No domingo seguinte, apareceu na casa de Cida. Foi bem recebido pela família da moça e pela própria moça, a essa altura encantada com a tenacidade do conquistador. Começaram o namoro às escondidas da direção da Apae, que costuma manter cuidadosa vigilância entre os aprendizes para evitar manifestações descontroladas de afeto.

Cida, 25 anos, tinha tido três namorados antes de Dudu. Ele, seis. Namoros que duraram de um dia a um mês. Com uma delas, ele "se amigou" durante três meses. O desejo de se casar veio somente quando conheceu a moça de longos cabelos negros, sorriso doce e corpo aparentemente frágil. Primeiro, passaram a usar uma aliança fininha de prata, compromisso firmado. Nesse tempo, Cida estava morando sozinha. A mãe e a irmã doente haviam ido morar com a irmã mais velha, num barraco de madeira nas proximidades. Cida ficou sozinha com uma cama e um som. "Foi difícil, passei muita fome de noite. Não tinha fogão. A vizinha é que me dava comida porque tinha dó de mim".

O namorado afligiu-se com a solidão e a penúria da namorada. Então, decidiu, que iria morar com ela tão logo conseguisse dinheiro para pagar o frete da mudança. Casaram-se no civil e no religioso. Um pastor celebrou a união em animada cerimônia na Apae — nunca dantes a instituição havia realizado algo do gênero. O vestido da noiva e o terno do noivo foram presente dos amigos da instituição. Teve bolo, tapete azul, carro chique para buscar a noiva, dama de honra e dezenas de presentes. Só não teve lua-de-mel.

Houve, sim, um dia de raro prazer. Cida e Dudu foram ao parque de diversões que se instalou provisoriamente em Samambaia Norte. Andaram de roda-gigante e de bate-bate. Vão à missa no domingo à noite. Dudu bebe sua sagrada cerveja de fim de semana. Quando está com Cida, "fica tudo bom". Diz que é "pra toda vida". Quer um casal de filhos e já deu nome ao que está vindo: Islene, se for mulher, por conta de uma aluna da Apae que ele acha muito bonita.

Islene só não é mais bonita que Cida, a sua "Doidinha", como ele a chama quando quer lhe fazer um carinho só com o som de uma palavra. Ela não gosta muito, fica "cismada". Mas ri e o chama de "Bebê". Doidinha e Bebê cuidam um do outro para dar conta de se ajeitar num mundo que a cada dia exige mais e mais competência e agilidade. Eles vão devagar, no passo que dão conta.

Cida faz as contas de sua vida tão jovem: de seus três grandes sonhos, já realizou dois. Arrumou um emprego (é empacotadora num supermercado) e se casou. Falta só dar um beijo e tirar uma foto com Leonardo, o irmão do Leandro, a dupla sertaneja. Dudu diz que vai ficar ao lado de Cida "para sempre". Ela ri e abaixa os olhos, tímida. "Gosto de quando ele diz isso". Mais sorriso, mais timidez.

Amores Possíveis 4

Diana & Dario

-- Aqui é o Dario.

-- Dario, tudo bem?

-- Você precisa ver a luta que foi para conseguir achar você.Quem sabe não é Deus que está mandando você pra mim?

-- Quantos anos você tem? Você não tem voz de 50.

-- Tenho 35 (Na verdade, tinha 26).

-- Onde você mora?

-- Em São Sebastião.

-- Num daqueles condomínios?

-- Não, numa fazenda.

-- Você é fazendeiro?

-- Mais ou menos.

-- Tá, então vamos conversar pessoalmente.

--- Só que tem um problema. Estou impedido de minha liberdade.

-- Por quê? Vocé é casado? Seu pai não te deixa sair de casa?

-- Nem uma nem outra.

-- Então é o quê? Você não está preso, está?

-- Estou. Sou interno da Papuda.

Susto,decepção, silêncio, mas Diana logo se recompôs.

-- Não me liga mais, por favor.

-- Isso é preconceito seu.

-- O que você fez?

-- Nada.

-- Como nada? Você estuprou?

-- Não.

-- Matou?

-- Não.

-- Roubou?

-- Não.

-- Fez o que, então? Na igreja é que você não estava.

-- Só conto pessoalmente.

-- Nem pensar. O último lugar no mundo que eu gostaria de ir é na cadeia. Até hoje na minha vida só entrei uma vez numa delegacia, pra tirar a identidade.

-- Por favor, me dá uma chance. Quando ouvi sua voz no rádio, senti uma coisa no coração. Posso pelo menos te ligar novamente?

-- Você liga. Se eu estiver, a gente conversa. Se não, me esqueça.

Essa história começou assim: Fazia três meses que Diana, 49 anos, estava numa dolorosa e demorada travessia de fim de um amor. Tinha mandado o companheiro embora de casa por causa da cachaça que ele entornava todos os dias. Foi-se o problema, ficou a saudade, o corpo abandonado de mulher, a solidão deitada do lado direito da cama.

Vendo a tia se afogando no mar dos mal-amados, uma das sobrinhas decidiu prescrever o mais antigo dos remédios para os males do amor: um novo amor. Diana, três ex-maridos, três filhos, morena, olhos claros e incisivos, corpo redondo e bem torneado, ombros abertos para o mundo e sorriso sempre pronto. Se dependesse da sobrinha, a tia logo arranjaria um namorado. Ela mesma ligou para um programa de rádio que promove encontros amorosos e deu o perfil de Diana e suas pretensões. Procurava um homem acima de 50 anos, solteiro, para amizade, quem sabe futuro compromisso.

Na noite seguinte, um sábado, o locutor ligou para Diana e a colocou no ar. Depois de conferir o perfil da ouvinte, pediu que ela contasse uma piada sem graça. Diana contou uma de papagaio, picante, pornográfica. "Não consegui dormir aquela noite, foram mais de 50 telefonemas, um bando de menino."

De seu radinho de pilha fraca e chiadeira forte, Dario não conseguiu ouvir o último número do telefone de Diana. Guardou o número capenga assim mesmo e na manhã seguinte ligou para todas as alternativas: 000 0000, 000 0001, 000 0002, 000 0003… até chegar aonde queria. Deu-se a conversa transcrita acima.

Dario tinha jogado a isca, era esperar passar o susto. Ele sabia que não seria impossível. Já tinha tido vários encontros na cadeia desde que fora condenado a 20 anos de prisão por latrocínio.

"Nem pensar, nem pensar", decidiu Diana depois de desligar o telefone. Dario havia combinado de ligar no dia seguinte às cinco da tarde. Até o meio-dia, ela trabalhou normalmente. Repetia para si mesma que era uma hipótese absurda. O desejo, porém, já tinha se instalado com sua potência incontrolável. À medida que se aproximava o horário marcado, Diana ficava mais e mais ansiosa. A voz suave e carinhosa de Dario ressoava em seu ouvido. O relógio tinha ficado inexplicavelmente preguiçoso e o coração, inesperadamente aflito. Quando o telefone tocou, sentiu um frio no estômago.

Conversaram mais alguns dias. (Mais tarde, esses telefonemas lhe custariam dura punição). Começaram a se corresponder. Ele derramando-se em declarações de amor. Ela encantada com o romantismo dele, o "princesa" escrito com tanto cuidado em longas cartas. Quando Dario propôs pela segunda que ela fosse visitá-lo na cadeia, Diana já começou a pensar concretamente na possibilidade. "É um pouquinho complicado na entrada", avisou Dario. Mal sabia ela os apuros pelos quais iria passar.

Quando deu por si, Diana estava dentro de um ônibus rumo à Papuda. Na porta do presídio, mais de mil mulheres. "A senhora não sabe que não entra com bolsa?", gritou a agente penitenciária na fila da revista. "Não, senhora". "Ah, é marinheira! (como são chamadas as mulheres que vão pela primeira vez à prisão). Pode deixar a bolsa ali, a mulher que guarda cobra R$ 0,50. Também não pode entrar de salto. O aluguel do chinelo é R$ 1,50".

O constrangimento estava longe de acabar. "Não tirou a roupa ainda por quê? Tem de tirar tudo. Agora, pode abaixar aí", as ordens se sucediam cada uma mais assustadora que a outra. Terminou com Diana tendo de se agachar sobre uma prancha de madeira na qual havia um chão de espelho. Ainda nessa posição vexatória, alguém passou um aparelho bem perto de seus órgãos genitais. É o "pica-pau", um detector de metais.

Quando o policial abriu o portão do pátio 3 e viu aquela multidão de homens olhando para ela, a marinheira deu meia-volta. "A senhora não pode sair agora. Só daqui a uma hora no mínimo". Não lhe restava alternativa senão enfrentar aquela multidão de olhos frios, irônicos, insinuantes, agressivos, de todo jeito. "Meu Deus, o que estou fazendo aqui? Isso aqui é o inferno". Não havia saída. "Quem a senhora veio visitar?". "O Dario". "É aquele na casa lá do fundo". Casa é como eles chamam algo parecido com uma cabana feita de cobertores esticados uns nos outros e que delimitam o espaço destinado aos presidiários e seus visitantes.

Diana seguiu em ziguezague por entre esse emaranhado de cobertores e gente até encontrar Dario. Conversa difícil, Diana completamente amedrontada naquela algaravia a que os presos dão o nome bastante apropriado de Rodoviária. Ele parecia extasiado: "Como você é linda!". Ela, assustada com o tamanho do homem. "Um armário" e com um fio de barba que contornava o rosto, cuidadosamente escanhoado. Mas nem a barba esquisita nem a Rodoviária nem o espelho nem o pica-pau tiveram o poder de mudar o rumo do desejo de Diana.

Ela voltou nas próximas semanas, e nas próximas. Suportou até a sala insalubre destinada às visitas íntimas. Uma cama de cimento, do tamanho solteirão, um cobertor sobre ela e nada mais. Um banheiro sem porta, um cômodo sem janela. A cada nova visita, mais o amor crescia.

Já se passaram quatro anos. Diana guarda um baú de cartas e presentes (artesanato feito pelos presos) que Dario lhe mandou. Uma das cartas tem 15 metros de "eu te amo" cuidadosamente escritos. "E ele trabalha na prisão. Imagina se não fizesse nada". Enquanto flutua na suave maré do amor correspondido, Diana pensa como será quando Dario ganhar a liberdade. Tem medo. "Quando ele foi pra cadeia era um menino de 19 anos. Hoje é um homem. Vai chover de mulher em cima dele. E eu não sou mais uma mocinha", diz ela, olhos rasos d´água, 20 anos mais velha que ele. Diana está pensando em se mudar para os Estados Unidos, onde moram parentes. Sabe que tudo pode mudar. Agora não serão apenas ele, ela e nada mais. Há um mundo sedutor à espera dele.

OS NOMES SÃO FICTÍCIOS

Amores Possíveis 5

Júlia & Nil

Pátio do Hospital São Vicente de Paula, o antigo Hpap, a principal porta de entrada dos que sofrem de perturbação mental na capital do país e que não têm acesso à rede particular de saúde. Homens e mulheres em uniformes azuis, vagando pela grama, amparados pelo sol, desamparados em seus tormentos. Uma mulher de rosto anguloso e olhos inclinados chora incessantemente. Chama-se Maria Júlia. Vive a solidão das almas martirizadas. Por um instante, algo lhe tira de sua dor. Atraída pelo movimento de outra interna, interrompe o choro. A mulher sai correndo e pula no colo de um interno. Mesmo surpreso, o homem abre os braços e sustenta o corpo impetuoso. A cena se repete uma, duas, três vezes. Júlia parece preocupada. Teme que os dois caiam no chão. Nildomar, é esse o nome dele, percebe que está sendo observado e passa a prestar atenção na observadora.

No dia seguinte, no café-da-manhã, Júlia continuava seu lamento carpideiro. "Ela não parava de chorar. Pensei que estivesse com fome". Nil levantou-se de onde estava, foi até ela e lhe ofereceu um ovo cozido, parte de sua ração matinal. Restaram-lhe o pão com manteiga e a caneca de café-com-leite. Não, não era fome, porque a moça continuou chorando. Mas, pelo menos, aceitou a aproximação do homem estranho e ao mesmo tempo parceiro de uma internação que de algum modo envergonhava a todos e os faziam cúmplices.

Júlia vinha de um surto de insanidade provocado pela superposição de um grave problema financeiro-familiar e uma alta dose de tranqüilizantes. Sócia do irmão numa padaria, foi surpreendida por uma coleção de 28 cheques sem fundo, a pressão dos credores, do banco e a ameaça de ser denunciada por estelionato - além da possibilidade de perder o emprego por conta de seu estado de crescente perturbação. Entrou em grave e renitente crise depressiva até o surto que a levou ao Hpap.

A mãe de Nil o havia levado mais uma vez ao hospital psiquiátrico. Em estágio severo de alcoolismo, tinha delírios e alucinações. Bebia álcool puro, perfume,desodorante, qualquer líquido que saciasse a dependência química. Começara a beber aos 15 anos. Já tinha 25 anos de vício e uma sucessão infindável de dissabores familiares. Nem a mãe nem os filhos o suportavam mais. Chamavam-no de ladrão, desacreditavam de toda e qualquer tentativa de ele parar de beber. Mas era um bêbado pacífico. Virava dia e noite na cachaça. Cochilava com a garrafa ao lado. Acordava, tomava um gole, cochilava novamente. "Ele chegou aguardar cachaça dentro do esgoto pra ninguém achar", conta Júlia.

Quando se conheceram, estavam assim: ela seriamente depressiva, ele gravemente alcoólatra. Nos 15 dias que se seguiram àquela primeira troca de olhares no pátio, Júlia e Nil conversaram durante todo o tempo que lhes foi possível e permitido pelas regras do hospital. Contaram-se um para o outro. Eram divorciados. Ele com um filho. Ela com dois. Quando encontravam-se nos corredores, roçavam o dorso das mãos uma na outra, instintivamente. Procuravam-se o tempo todo, estando longe ou estando perto. Logo, estavam trocando beijinhos às escondidas. Passadas duas semanas, Júlia teve alta. Nil deu-lhe o número do seu telefone. Combinaram de se encontrar lá fora.

Depois de alguns dias em Belo Horizonte, na casa da mãe, Júlia voltou para a Cidade Ocidental, município na região do Entorno de Brasília, onde morava. Sabia que estava apaixonada, mas tinha decidido não procurar Nil, porque temia a decepção e o sofrimento. "Ele é seis anos mais novo do que eu. Do lado de fora, tudo podia ser diferente". Uma amiga aconselhou-a a pelo menos dar um telefonema. "O que é que custa? Telefona e vê no que dá. Você já está sofrendo mesmo, então que seja por um motivo real". Era o que Júlia precisava ouvir. Ligou e foi muito bem recebida. Combinaram de ele ir à casa dela. Júlia foi buscá-lo no ponto de ônibus.

Quando ele pôs o pé no chão de terra vermelha e esburacada da Cidade Ocidental, Júlia entregou-se aos seus braços. Andaram uns 600 metros até chegar em casa, abraçados e apressados. Ela tivera o cuidado de mandar os filhos para a casa de uma amiga. Pôde, finalmente, desenfrear-se em beijos loucos, seguidos de muito sexo. Dormiram juntos naquela noite, na outra e na subseqüente. Conversavam toda a conversa do mundo. "A gente se sentava na caixa-d’água e passava horas conversando", lembra-se Nil. “Via todo mundo chegar do trabalho, via escurecer, via as luzes das casas se apagando até que a gente decidia que era hora de ir pra cama”, lembra. Conversar era tão bom quanto fazer sexo, diz Júlia, sob o sorriso matreiro dos olhos de Nil.

Mas mesmo assim ele não sabia bem o que queria, ou achava que não sabia. Ficava uns dias na casa de Júlia e outros na casa da mãe dele. Até que ela: "Olhe, não tenho mais idade para essas coisas. Quer ficar comigo, fica de vez". Como todo homem que se preza, Nil não suportou a pressão e "vazou", como ele mesmo conta. Mas ficou pouco tempo vazado. Menos de uma semana depois, estava de volta, com todo o seu patrimônio: uma mala com duas calças jeans e três camisetas. Já era um homem de 25 anos que tinha perdido o último emprego por causa da cachaça.

Havia amor, claro, mas nem ele, o amor, dava conta de arrancar Nil da dependência química. Foram necessários mais oito anos de idas e vindas, de tentativas e fracassos, até que o apego à religião (o casal é mórmon) e o medo de perder Júlia o fizeram libertar-se do álcool. "Eu já tinha quebrado uns quatro pandeiros (Nil gosta de tocar o instrumento) na cabeça dele. Um dia quebrei um coco cheio de cachaça.Ele caiu no chão e eu saí gritando: Aí, meu Deus, matei o Nil". Nem de longe. Ele estava se fingindo de morto.

Faz 10 anos que Nil, hoje com 43 anos, não bebe, não fuma e nem toma café (o mormonismo proíbe tudo isso mais o sexo extraconjugal). É funcionário público da Prefeitura de Luziânia, cidade a 60 quilômetros de Brasília. Junto com a mulher, construiu um pequeno patrimônio — um Uno Fire 2003, um computador, uma casa em Vicente Pires, cidade-satélite do Distrito Federal.

Se Júlia ajudou Nil a largar a cachaça, ele a ajuda numa perda sem tamanho. Por conta do diabetes, Júlia, 49 anos, ficou cega e se aposentou como funcionária pública do Distrito Federal. Ele passa o dia todo cuidando dela. Mede a glicose, aplica insulina, leva-a aonde for preciso."É meu enfermeiro. Um dia desses, uma ex-colega me perguntou se ele havia me deixado. Porque homem é assim,né? Se a mulher adoece, ele cai fora". Nil sorri e diz: "Tudo o que eu fizer por ela não chega nem aos pés do que ela fez por mim. Vou ficar devendo pro resto da vida".

Amores Possíveis 6

Val & Valder

Aos 39 anos, Valderiza achou o homem da sua vida. Conheceram-se num bar da Estrutural, a favela mais incansável e renitente de Brasília, imensidão de barracos de madeira e de tijolo sem reboco a 15 quilômetros do Palácio do Planalto Ele é alcoólatra. Toda semana, ela paga entre R$ 50 e R$ 60 de boteco. Valder, 30 anos, só bebe bebida destilada. Mas a dependência química do parceiro não chega a ser um problema para Val. E, quando o é, nem de longe ameaça o casamento. Não é contrato de papel passado, é ajuntamento de duas precisões. Ela precisava de companhia para abrir os caminhos da vida. Ele, idem, ibidem.

No dia que mudou a sua vida, Val tinha ido comprar alho para temperar o almoço. Era um sábado, véspera do Dia das Mães de 2003. Estava acompanhada de uma amiga que a apresentou a Valder num boteco no meio do caminho. As duas moças aceitaram o convite para a cerveja e Val já saiu de lá de namorado novo. Na semana seguinte, Valder começou a ir buscá-la na escola onde ela fazia supletivo do ensino médio à noite. Parava o caminhão velho e barulhento na pista e ficava esperando a namorada. Se pudesse, estacionava e ia buscá-la na porta da escola, mas tinha medo de deixar o caminhão sozinho, cheio de latinhas para reciclagem. Continente e conteúdo eram patrimônio do patrão.

Como inevitavelmente ocorre nas relações de amor inicial, os amantes dão-se a longas conversas. Depois da aula, tarde da noite, mesmo cansados, os dois atravessavam a madrugada conversando no banco de madeira velha em frente ao barraco. Mesmo temendo a violência que de tão feroz faz tremer até a polícia que durante algum tempo não entrava em regiões mais afastados da favela. Mas o amor corre riscos e nem se da conta disso.

Dois meses depois da primeira cerveja, estavam morando juntos, eles dois, mais a mãe e o filho de Val, num barraco de madeirite esburacada e telha de amianto mais esburacada ainda numa das quadras mais pobres e violentas da Estrutrural,a 12 – aquela onde até a polícia tem medo de entrar. No período de chuva, escondiam-se em cantos de parede. "Não tinha água, não tinha luz. A gente sofreu muito, até fome a gente passou. Na época eu era costureira numa confecção". O dinheiro era um quase nada e a precisão, um quase tudo.

De seu lado, Valder carregava seu quinhão de mazelas. Tinha morado quatro anos com uma mulher, com quem teve um filho. Depois que o pai, também alcoólatra, morreu, as coisas pioraram. Ele perdeu o emprego de intermediário na compra e venda de materiais recicláveis,e passou a catar papelão "lá em cima", como os moradores da Estrutural chamam o Lixão (Décadas de uso transformaram o lugar numa montanha de lixo e gases tóxicos que fumegam ininterruptamente debaixo da terra).

Até que Val e Valder começaram a perceber que poderiam somar forças. Ela saiu do trabalho de costura, que lhe dava pouco dinheiro e excesso de trabalho ("às vezes,eu saía da confecção à meia-noite"), e montou um pequeno quiosque de lanches "lá em cima", no Lixão, a impressionante montanha que nasceu da sujeira da capital do poder. Valder deixou de catar papelão para ajudar a mulher no quiosque de lanche e na compra e venda de latinhas, revistas brancas, cobre e alumínio para reciclagem. O quiosque é assim: chão de terra, quatro paredes de madeirite, coberta de outros pedaços de madeirite, misturados a retalhos de lona. Três bancos de madeira em forma de U. Dois galões de suco de saquinho. Dois isopores com salgados, pão e salsicha, meia dúzia de saquinhos de salgadinhos croc-croc e uma garrafa de pinga que todo mundo faz de conta que não vê, porque é proibido. É Val quem cuida de todo o dinheiro da casa. Ela e a mãe, Senize, de 77 anos, fazem os salgados e, todos os dias, o casal sobe para a montanha de lixo numa Kombi troncha e barulhenta.

Três anos depois de juntarem seus desacertos de vida, Val e Valder já se orgulham de ter uma casa de quatro cômodos de alvenaria e de a mãe dela morar numa outra, em frente, de muro de ferro, um luxo para a extrema miséria da quadra 12, onde os barracos de pedaços de madeira velha se amontoam tanto que não se sabe onde termina a casa de um e começa a casa do outro.

Val se sente amada, principalmente quando Valder lhe diz que se ela o deixar, ele se mata. "Nem ele me trai, nem eu o traio. Isso é difícil de se ver por aqui, né, não?" Do jeito em que vivem, dá para acreditar que a fidelidade é uma regra obedecida pelos dois. Trabalham juntos e só saem juntos, quando saem. "Ele não me deixa fazer nada sozinha. Eu queriai r pra academia porque estou seis quilos mais gorda, mas ele não deixa. Abriu uma academia chique na Estrutural, está pensando o quê?", brinca a mulher bem-amada. Valder só sai para tomar sua sagrada dose de pinga. "Vai e volta rapidinho".

Há uma sombra no coração de Val. É o alcoolismo de Valder. Não pelo vício em si, mas pelas dores no estômago que ele sente vez ou outra. "Primeiro dói do lado direito, depois do esquerdo. Ele vai amarelando, suando, fica gelado. Teve uma vez que teve uma convulsão".Val não tem esperanças de que ele vença o vício.Ele mesmo diz: "Não vou deixar de beber nem de fumar". E ela lamenta: "Acho ruim porque queria que ele vivesse mais uns 20 anos comigo."