domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 6

Val & Valder

Aos 39 anos, Valderiza achou o homem da sua vida. Conheceram-se num bar da Estrutural, a favela mais incansável e renitente de Brasília, imensidão de barracos de madeira e de tijolo sem reboco a 15 quilômetros do Palácio do Planalto Ele é alcoólatra. Toda semana, ela paga entre R$ 50 e R$ 60 de boteco. Valder, 30 anos, só bebe bebida destilada. Mas a dependência química do parceiro não chega a ser um problema para Val. E, quando o é, nem de longe ameaça o casamento. Não é contrato de papel passado, é ajuntamento de duas precisões. Ela precisava de companhia para abrir os caminhos da vida. Ele, idem, ibidem.

No dia que mudou a sua vida, Val tinha ido comprar alho para temperar o almoço. Era um sábado, véspera do Dia das Mães de 2003. Estava acompanhada de uma amiga que a apresentou a Valder num boteco no meio do caminho. As duas moças aceitaram o convite para a cerveja e Val já saiu de lá de namorado novo. Na semana seguinte, Valder começou a ir buscá-la na escola onde ela fazia supletivo do ensino médio à noite. Parava o caminhão velho e barulhento na pista e ficava esperando a namorada. Se pudesse, estacionava e ia buscá-la na porta da escola, mas tinha medo de deixar o caminhão sozinho, cheio de latinhas para reciclagem. Continente e conteúdo eram patrimônio do patrão.

Como inevitavelmente ocorre nas relações de amor inicial, os amantes dão-se a longas conversas. Depois da aula, tarde da noite, mesmo cansados, os dois atravessavam a madrugada conversando no banco de madeira velha em frente ao barraco. Mesmo temendo a violência que de tão feroz faz tremer até a polícia que durante algum tempo não entrava em regiões mais afastados da favela. Mas o amor corre riscos e nem se da conta disso.

Dois meses depois da primeira cerveja, estavam morando juntos, eles dois, mais a mãe e o filho de Val, num barraco de madeirite esburacada e telha de amianto mais esburacada ainda numa das quadras mais pobres e violentas da Estrutrural,a 12 – aquela onde até a polícia tem medo de entrar. No período de chuva, escondiam-se em cantos de parede. "Não tinha água, não tinha luz. A gente sofreu muito, até fome a gente passou. Na época eu era costureira numa confecção". O dinheiro era um quase nada e a precisão, um quase tudo.

De seu lado, Valder carregava seu quinhão de mazelas. Tinha morado quatro anos com uma mulher, com quem teve um filho. Depois que o pai, também alcoólatra, morreu, as coisas pioraram. Ele perdeu o emprego de intermediário na compra e venda de materiais recicláveis,e passou a catar papelão "lá em cima", como os moradores da Estrutural chamam o Lixão (Décadas de uso transformaram o lugar numa montanha de lixo e gases tóxicos que fumegam ininterruptamente debaixo da terra).

Até que Val e Valder começaram a perceber que poderiam somar forças. Ela saiu do trabalho de costura, que lhe dava pouco dinheiro e excesso de trabalho ("às vezes,eu saía da confecção à meia-noite"), e montou um pequeno quiosque de lanches "lá em cima", no Lixão, a impressionante montanha que nasceu da sujeira da capital do poder. Valder deixou de catar papelão para ajudar a mulher no quiosque de lanche e na compra e venda de latinhas, revistas brancas, cobre e alumínio para reciclagem. O quiosque é assim: chão de terra, quatro paredes de madeirite, coberta de outros pedaços de madeirite, misturados a retalhos de lona. Três bancos de madeira em forma de U. Dois galões de suco de saquinho. Dois isopores com salgados, pão e salsicha, meia dúzia de saquinhos de salgadinhos croc-croc e uma garrafa de pinga que todo mundo faz de conta que não vê, porque é proibido. É Val quem cuida de todo o dinheiro da casa. Ela e a mãe, Senize, de 77 anos, fazem os salgados e, todos os dias, o casal sobe para a montanha de lixo numa Kombi troncha e barulhenta.

Três anos depois de juntarem seus desacertos de vida, Val e Valder já se orgulham de ter uma casa de quatro cômodos de alvenaria e de a mãe dela morar numa outra, em frente, de muro de ferro, um luxo para a extrema miséria da quadra 12, onde os barracos de pedaços de madeira velha se amontoam tanto que não se sabe onde termina a casa de um e começa a casa do outro.

Val se sente amada, principalmente quando Valder lhe diz que se ela o deixar, ele se mata. "Nem ele me trai, nem eu o traio. Isso é difícil de se ver por aqui, né, não?" Do jeito em que vivem, dá para acreditar que a fidelidade é uma regra obedecida pelos dois. Trabalham juntos e só saem juntos, quando saem. "Ele não me deixa fazer nada sozinha. Eu queriai r pra academia porque estou seis quilos mais gorda, mas ele não deixa. Abriu uma academia chique na Estrutural, está pensando o quê?", brinca a mulher bem-amada. Valder só sai para tomar sua sagrada dose de pinga. "Vai e volta rapidinho".

Há uma sombra no coração de Val. É o alcoolismo de Valder. Não pelo vício em si, mas pelas dores no estômago que ele sente vez ou outra. "Primeiro dói do lado direito, depois do esquerdo. Ele vai amarelando, suando, fica gelado. Teve uma vez que teve uma convulsão".Val não tem esperanças de que ele vença o vício.Ele mesmo diz: "Não vou deixar de beber nem de fumar". E ela lamenta: "Acho ruim porque queria que ele vivesse mais uns 20 anos comigo."

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