domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 5

Júlia & Nil

Pátio do Hospital São Vicente de Paula, o antigo Hpap, a principal porta de entrada dos que sofrem de perturbação mental na capital do país e que não têm acesso à rede particular de saúde. Homens e mulheres em uniformes azuis, vagando pela grama, amparados pelo sol, desamparados em seus tormentos. Uma mulher de rosto anguloso e olhos inclinados chora incessantemente. Chama-se Maria Júlia. Vive a solidão das almas martirizadas. Por um instante, algo lhe tira de sua dor. Atraída pelo movimento de outra interna, interrompe o choro. A mulher sai correndo e pula no colo de um interno. Mesmo surpreso, o homem abre os braços e sustenta o corpo impetuoso. A cena se repete uma, duas, três vezes. Júlia parece preocupada. Teme que os dois caiam no chão. Nildomar, é esse o nome dele, percebe que está sendo observado e passa a prestar atenção na observadora.

No dia seguinte, no café-da-manhã, Júlia continuava seu lamento carpideiro. "Ela não parava de chorar. Pensei que estivesse com fome". Nil levantou-se de onde estava, foi até ela e lhe ofereceu um ovo cozido, parte de sua ração matinal. Restaram-lhe o pão com manteiga e a caneca de café-com-leite. Não, não era fome, porque a moça continuou chorando. Mas, pelo menos, aceitou a aproximação do homem estranho e ao mesmo tempo parceiro de uma internação que de algum modo envergonhava a todos e os faziam cúmplices.

Júlia vinha de um surto de insanidade provocado pela superposição de um grave problema financeiro-familiar e uma alta dose de tranqüilizantes. Sócia do irmão numa padaria, foi surpreendida por uma coleção de 28 cheques sem fundo, a pressão dos credores, do banco e a ameaça de ser denunciada por estelionato - além da possibilidade de perder o emprego por conta de seu estado de crescente perturbação. Entrou em grave e renitente crise depressiva até o surto que a levou ao Hpap.

A mãe de Nil o havia levado mais uma vez ao hospital psiquiátrico. Em estágio severo de alcoolismo, tinha delírios e alucinações. Bebia álcool puro, perfume,desodorante, qualquer líquido que saciasse a dependência química. Começara a beber aos 15 anos. Já tinha 25 anos de vício e uma sucessão infindável de dissabores familiares. Nem a mãe nem os filhos o suportavam mais. Chamavam-no de ladrão, desacreditavam de toda e qualquer tentativa de ele parar de beber. Mas era um bêbado pacífico. Virava dia e noite na cachaça. Cochilava com a garrafa ao lado. Acordava, tomava um gole, cochilava novamente. "Ele chegou aguardar cachaça dentro do esgoto pra ninguém achar", conta Júlia.

Quando se conheceram, estavam assim: ela seriamente depressiva, ele gravemente alcoólatra. Nos 15 dias que se seguiram àquela primeira troca de olhares no pátio, Júlia e Nil conversaram durante todo o tempo que lhes foi possível e permitido pelas regras do hospital. Contaram-se um para o outro. Eram divorciados. Ele com um filho. Ela com dois. Quando encontravam-se nos corredores, roçavam o dorso das mãos uma na outra, instintivamente. Procuravam-se o tempo todo, estando longe ou estando perto. Logo, estavam trocando beijinhos às escondidas. Passadas duas semanas, Júlia teve alta. Nil deu-lhe o número do seu telefone. Combinaram de se encontrar lá fora.

Depois de alguns dias em Belo Horizonte, na casa da mãe, Júlia voltou para a Cidade Ocidental, município na região do Entorno de Brasília, onde morava. Sabia que estava apaixonada, mas tinha decidido não procurar Nil, porque temia a decepção e o sofrimento. "Ele é seis anos mais novo do que eu. Do lado de fora, tudo podia ser diferente". Uma amiga aconselhou-a a pelo menos dar um telefonema. "O que é que custa? Telefona e vê no que dá. Você já está sofrendo mesmo, então que seja por um motivo real". Era o que Júlia precisava ouvir. Ligou e foi muito bem recebida. Combinaram de ele ir à casa dela. Júlia foi buscá-lo no ponto de ônibus.

Quando ele pôs o pé no chão de terra vermelha e esburacada da Cidade Ocidental, Júlia entregou-se aos seus braços. Andaram uns 600 metros até chegar em casa, abraçados e apressados. Ela tivera o cuidado de mandar os filhos para a casa de uma amiga. Pôde, finalmente, desenfrear-se em beijos loucos, seguidos de muito sexo. Dormiram juntos naquela noite, na outra e na subseqüente. Conversavam toda a conversa do mundo. "A gente se sentava na caixa-d’água e passava horas conversando", lembra-se Nil. “Via todo mundo chegar do trabalho, via escurecer, via as luzes das casas se apagando até que a gente decidia que era hora de ir pra cama”, lembra. Conversar era tão bom quanto fazer sexo, diz Júlia, sob o sorriso matreiro dos olhos de Nil.

Mas mesmo assim ele não sabia bem o que queria, ou achava que não sabia. Ficava uns dias na casa de Júlia e outros na casa da mãe dele. Até que ela: "Olhe, não tenho mais idade para essas coisas. Quer ficar comigo, fica de vez". Como todo homem que se preza, Nil não suportou a pressão e "vazou", como ele mesmo conta. Mas ficou pouco tempo vazado. Menos de uma semana depois, estava de volta, com todo o seu patrimônio: uma mala com duas calças jeans e três camisetas. Já era um homem de 25 anos que tinha perdido o último emprego por causa da cachaça.

Havia amor, claro, mas nem ele, o amor, dava conta de arrancar Nil da dependência química. Foram necessários mais oito anos de idas e vindas, de tentativas e fracassos, até que o apego à religião (o casal é mórmon) e o medo de perder Júlia o fizeram libertar-se do álcool. "Eu já tinha quebrado uns quatro pandeiros (Nil gosta de tocar o instrumento) na cabeça dele. Um dia quebrei um coco cheio de cachaça.Ele caiu no chão e eu saí gritando: Aí, meu Deus, matei o Nil". Nem de longe. Ele estava se fingindo de morto.

Faz 10 anos que Nil, hoje com 43 anos, não bebe, não fuma e nem toma café (o mormonismo proíbe tudo isso mais o sexo extraconjugal). É funcionário público da Prefeitura de Luziânia, cidade a 60 quilômetros de Brasília. Junto com a mulher, construiu um pequeno patrimônio — um Uno Fire 2003, um computador, uma casa em Vicente Pires, cidade-satélite do Distrito Federal.

Se Júlia ajudou Nil a largar a cachaça, ele a ajuda numa perda sem tamanho. Por conta do diabetes, Júlia, 49 anos, ficou cega e se aposentou como funcionária pública do Distrito Federal. Ele passa o dia todo cuidando dela. Mede a glicose, aplica insulina, leva-a aonde for preciso."É meu enfermeiro. Um dia desses, uma ex-colega me perguntou se ele havia me deixado. Porque homem é assim,né? Se a mulher adoece, ele cai fora". Nil sorri e diz: "Tudo o que eu fizer por ela não chega nem aos pés do que ela fez por mim. Vou ficar devendo pro resto da vida".

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