domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 1

Ernandes & Mariana

Andarilhos acompanham a correnteza das estradas. Os passos ritmados, o calor do corpo, o sangue veloz, a paisagem sempre outra, os turistas, os ciganos, os hippies, os caminhoneiros, os outros andarilhos. Um viver sem espera. Um ir ao encontro não se sabe do que nem para quê. Ir tão-somente.

Ernandes, 74 anos, é andarilho desde os 16. Começou a andar com um amigo farmacêutico que lhe convidou para sair estrada afora. Menino sem estudo, filho de pai sargento e alcoólatra,14 irmãos, aceitou de pronto. Fizeram o caminho do Rio a Porto Alegre. Não demorou para Ernandes perceber que podia trilhar uma rota de sobrevivência que se não era de todo promissora pelo menos lhe permitia experimentar geografias diferentes, passo a passo.

Andarilhando, conheceu as grandes cidades brasileiras de Brasília para baixo. Alcançou a fronteira com o Uruguai. Numa dessas andarilhagens, 40 anos atrás, indo de São Paulo a caminho do Rio de Janeiro, Ernandes viu ao longe uma moça miúda, meio cambaleante, vindo na sua direção. Era uma andarilha, logo percebeu pelas roupas andrajosas. Mais de perto, pôde ver um rosto delicado, de traços suaves, longos cabelos de cachos graúdos, pequena como uma menina. Mais de perto ainda, percebeu que ela estava sangrando "por baixo". O sangue descia pelas pernas, mas o que ela pediu a ele foi comida."Me arruma o que comer", disse, com sua voz de menina.

Ele abriu a matula e lhe entregou um pão com carne que tinha guardado para o almoço. Ela comeu com a avidez de esfomeada, sem se importar com o sangue que continuava a escorrer pelas pernas.Os dois de pé no acostamento da Via Dutra, à época uma rodovia recém-inaugurada. Por uma razão inexplicável, a inexplicável razão de um amor que nasce, Mariana, à época com 28 anos, percebeu que ali estava a âncora do seu viver. "Posso ir junto com você?", perguntou ela a Ernandes. Ele olhou para os cachos garbosos da moça desamparada e quis tê-los sempre por perto. "Pode", respondeu.

E seguiram rumo ao Rio para onde ele ia e de onde ela vinha. Na verdade, Mariana nem sabia ao certo para onde ia, ia tão-somente. Conseguiram chegar à casa da mãe de Ernandes, no Rio. Ela e as irmãs cuidaram de Mariana. (Ela nunca contou, e talvez nem saiba, a razão do sangramento. Se era a sangria mensal das mulheres ou se um machucado, uma violência). Do passado de Mariana também pouco se sabe. Só que ela nasceu em Piraju, Minas Gerais. Que foi expulsa de casa porque jogava pedra em todo mundo.

Continuaria jogando até hoje não tivesse encontrado Ernandes. Desde então, os dois andarilhos cruzam o Brasil do Centro-Oeste para baixo. Mariana descobriu no andarilho de rosto anguloso, ombros largos e mãos carnudas um ancoradouro para o descanso de suas perturbações. Perto dele, ela se acalma. Longe dele, ela atira pedras. "Até hoje", conta ele.

Quando souberam que uma nova capital estava sendo construída dentro do território goiano, para cá vieram. E daqui só saíram para novas andanças. Tiveram um filho, Sebastião, que há 15 anos cumpre pena de 22 anos na Papuda por latrocínio. "Ele era igual a nós, mas os colegas fizeram a cabeça dele e ele ficou atrapalhado da idéia". O casal espera a liberdade do filho para, juntos, deixarem a cidade. Não sabem para onde.

Enquanto isso, Ernandes e Mariana acampam todas as noites em frente ao Hospital de Base, na esquina do Eixinho com a Rua das Farmácias. De onde estão, vêem o Banco Central, a sede do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Todo seu patrimônio cabe num carrinho de mão que ele construiu para carregar sua protegida. Nele, alguns cobertores, duas cadeiras de plástico, uma garrafa térmica, um vasilhame que armazena dez litros de água, duas bonecas velhas, meia dúzia de peças de roupa, dois chinelos e uma lona que uma madame lhes deu faz um ano. No bolso dele, uma carteira velha com os documentos de identidade dos dois.

A rotina começa com o barulho dos carros e dos ônibus. Enquanto Ernandes desmancha a barraca, Mariana fica sob o sol brincando com as duas bonecas. Depois, ele vai ao quiosque comprar café com leite, biscoito e refrigerante. Encharcam-se de refrigerante. Ficam por ali esperando os trocados do dia até chegar a hora do passeio pelo Setor Comercial Sul. Quando começa a anoitecer, Mariana fica ansiosa para voltar ao gramado do Hospital de Base. Precisa alimentar a gata que acabou de ter filhotes. "Ela dá leite pra gata, pra gata criar leite pra dar para os filhotes", diz Ernandes, como quem conta uma grande história. E por que não?

Mariana padece de uma sífilis, diz Ernandes. "Ela está com o sangue sujo". Precisa de cuidados, mas todas as vezes que é internada no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) "querem pôr ela no isolamento pra ela morrer",diz ele. "Não me dão comida, nem água, nem banho", conta ela. Nem em abrigo Ernandes se sente seguro. "Quando eu saio, ela pula no pescoço de todo mundo." Mariana tem dificuldades para articular as palavras, mas o pouco que consegue falar é sempre uma repetição do final das frases de Ernandes. Se ele diz: "O sol está de matar, vamos embora mais cedo. Ela repete: "Vamos embora mais cedo", acenando a cabeça de cima para baixo, em sinal de concordância absoluta com o seu eterno protetor.

Quando vai chegando o meio-dia, o casal sai do gramado em frente ao Hospital de Base e desce em direção à W-3Norte. Ernandes monta um estofado de cobertores, inclina o carrinho de mão, põe uma cadeira para servir de degrau e segura a mão de Mariana para que ela possa subir no carrinho. Seguem até o gramado ao lado do ponto de ônibus do Setor de Rádio e Televisão Sul. Ele põe duas cadeiras no chão e os dois ficam lá até o final da tarde, esperando a ajuda dos passantes. De vez em quando, ele comenta como foi o almoço, que a carne estava dura, que tinha pouco feijão. Ela reclama de dores nas costas. Ficam em longos silêncios até que chega a hora de voltar para casa, para o gramado do Hospital de Base. Ela sentada no carrinho, ele puxando com os ombros e os braços todo o seu patrimônio material e afetivo.

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