domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 3

Dudu &Cida

Especial é sinônimo de incomum, invulgar, singular. Singular é sinônimo de peculiar, raro, ímpar, particular, único. Dudu e Cida são portadores de necessidades especiais. Têm leves comprometimentos mentais, mas nada que os impeça de ter autonomia para administrar a própria vida. Não o fazem com a suposta eficiência e desvelo dos que se consideram plenos de capacidade mental. São singulares no seu modo menos automático de responder ao mundo. A voltagem é menos acelerada, mas a sintonia pode ser perfeita. O encontro de Eduardo Luiz, 35 anos, e Maria Aparecida, 25, é isso: uma delicada combinação de dois seres muito particulares.

Conheceram-se há quatro anos, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) da 712/912 Norte. Ela, aluna. Ele, funcionário, ex-aluno, ex-aprendiz. Uma aproximação de poucas palavras. Um dia, no descanso de uma hora depois do almoço, Cida estava deitada no banco da escola, de olhos fechados para sonhar seus três sonhos preferidos. Alguém lhe deu um selinho. "Quem me beijou?", perguntou às amigas que estavam por ali. "Foi o Dudu. Beijou e saiu correndo", respondeu uma delas. Dudu, Cida e seus amigos e colegas da Apae são assim: comoventemente infantis.

Muitos dias e alguns beijinhos depois, Dudu pediu Cida em namoro. "Quero não", respondeu a moça. Até então, o rapaz dos beijos roubados não a atraía. Cida estava mais preocupada com a própria vida e a de sua família. Pensava na mãe, de 64 anos, e na irmã de 20, as duas também portadoras de necessidades especiais. A irmã, Maria de Jesus, com um comprometimento mental maior, como se diz no jargão médico. Francisca, a irmã mais velha, não herdou nenhuma deficiência.

O beijoqueiro Dudu teve meningite na infância, que lhe deixou sintomas para toda a vida. A fala é vagarosa, a dicção, de menino. Vivia num quarto nos fundos da casa de um irmão na Ceilândia. Na Apae, aprendeu a ler, a escrever e a se preparar para o mercado de trabalho. Conseguiu emprego na própria instituição: lava os banheiros e limpa as salas de aula. Antes, tinha sido caseiro e lavador de carro. Na Apae, ganhou carteira assinada. Pronto. Estava na hora de ter a própria família.

"Achei ela bonita", diz Dudu, olhos sempre inquisidores, sorriso de menino e persistência de apaixonado. Todos os dias, no horário de almoço, ele tentava se aproximar de Cida, mas ela repetia: "Quero não". E ele insistia: "Ainda vou namorar você". Esperava a mulher de seus sonhos deitar-se no banco da escola, na hora do lanche, e dava-lhe mais um beijinho. Tantos foram que Cida fechava os olhos só para esperar o beijo. "Aí, fiquei pensando nele. Pensava nele direto, o tempo todo". No Dudu, não somente nos beijos.

De algum modo, Dudu percebeu que estava no caminho certo. Arriscou-se um pouco mais: pediu endereço e telefone e, surpresa das surpresas, foi atendido. QR 209, conjunto tal, número tal, Samambaia Norte. Não esperou nem um fim de semana a mais. No domingo seguinte, apareceu na casa de Cida. Foi bem recebido pela família da moça e pela própria moça, a essa altura encantada com a tenacidade do conquistador. Começaram o namoro às escondidas da direção da Apae, que costuma manter cuidadosa vigilância entre os aprendizes para evitar manifestações descontroladas de afeto.

Cida, 25 anos, tinha tido três namorados antes de Dudu. Ele, seis. Namoros que duraram de um dia a um mês. Com uma delas, ele "se amigou" durante três meses. O desejo de se casar veio somente quando conheceu a moça de longos cabelos negros, sorriso doce e corpo aparentemente frágil. Primeiro, passaram a usar uma aliança fininha de prata, compromisso firmado. Nesse tempo, Cida estava morando sozinha. A mãe e a irmã doente haviam ido morar com a irmã mais velha, num barraco de madeira nas proximidades. Cida ficou sozinha com uma cama e um som. "Foi difícil, passei muita fome de noite. Não tinha fogão. A vizinha é que me dava comida porque tinha dó de mim".

O namorado afligiu-se com a solidão e a penúria da namorada. Então, decidiu, que iria morar com ela tão logo conseguisse dinheiro para pagar o frete da mudança. Casaram-se no civil e no religioso. Um pastor celebrou a união em animada cerimônia na Apae — nunca dantes a instituição havia realizado algo do gênero. O vestido da noiva e o terno do noivo foram presente dos amigos da instituição. Teve bolo, tapete azul, carro chique para buscar a noiva, dama de honra e dezenas de presentes. Só não teve lua-de-mel.

Houve, sim, um dia de raro prazer. Cida e Dudu foram ao parque de diversões que se instalou provisoriamente em Samambaia Norte. Andaram de roda-gigante e de bate-bate. Vão à missa no domingo à noite. Dudu bebe sua sagrada cerveja de fim de semana. Quando está com Cida, "fica tudo bom". Diz que é "pra toda vida". Quer um casal de filhos e já deu nome ao que está vindo: Islene, se for mulher, por conta de uma aluna da Apae que ele acha muito bonita.

Islene só não é mais bonita que Cida, a sua "Doidinha", como ele a chama quando quer lhe fazer um carinho só com o som de uma palavra. Ela não gosta muito, fica "cismada". Mas ri e o chama de "Bebê". Doidinha e Bebê cuidam um do outro para dar conta de se ajeitar num mundo que a cada dia exige mais e mais competência e agilidade. Eles vão devagar, no passo que dão conta.

Cida faz as contas de sua vida tão jovem: de seus três grandes sonhos, já realizou dois. Arrumou um emprego (é empacotadora num supermercado) e se casou. Falta só dar um beijo e tirar uma foto com Leonardo, o irmão do Leandro, a dupla sertaneja. Dudu diz que vai ficar ao lado de Cida "para sempre". Ela ri e abaixa os olhos, tímida. "Gosto de quando ele diz isso". Mais sorriso, mais timidez.

Nenhum comentário: