domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 7

Vera & Genes

Genes estava em sala de aula quando ouviu o toque-toque da bengala de Vera. Saiu feito louco atrás dela e deu de cara com uma pilastra."Fiquei zonzo". Mais zonzo ficaria nos dias seguintes, tentando conquistar a moça arredia. (Para quem não enxerga, o barulho da bengala abrindo caminho na escuridão é o mesmo que, para os que enxergam, ouvir a voz de alguém sem ainda tê-lo visto). Vera também havia reconhecido o toque-toque da bengala de Genes. Percebeu que ele estava um pouco apressado, mas seguiu em frente. Mais adiante, o persistente e célere Genes a alcançou. "Vera, e aí, tudo bem?", perguntou, ainda tonto. A moça inclinou o pescoço para a direita, abaixou levemente a cabeça, sorriu e respondeu que sim, estava tudo bem.

Eles se conheciam havia muito tempo, desde que Genes começou a freqüentar escolas de deficientes visuais. Não tinha sido fácil para ele aceitar o mergulho na cegueira. Foi num recreio da escola que a escuridão avisou que estava chegando. Genes saiu para o lanche e quando voltou já não enxergava o que estava escrito no quadro-negro.Tinha tido deslocamento de retina, cujas causas até hoje são um mistério. Naquele mesmo ano, o adolescente de 13 anos soube que era filho adotivo e viu a irmã morrer por erro médico.

Vera também tem suas dores ilimitadas. Ela e cinco de seus dez irmãos nasceram cegos, em conseqüência de toxoplasmose. Só andou aos 4 anos e durante dois anos da adolescência perdeu a audição, recuperada com uma cirurgia. Os açoites da vida deixaram-na insegura, mas não a imobilizaram. Seguia o caminho de suas possibilidades até ouvir o barulho da bengala de Genes, que lhe ofereceu uma trilha mais segura. Naquele dia em que ele bateu com a testa na pilastra, já se ofereceu para acompanhá-la até a agência bancária, para onde ela estava indo. Depois, convidou-a para um passeio no Parque da Cidade. Sempre com a potência dos homens decididos, levou-a em casa, de ônibus, mesmo ele morando no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, e ela, na Cidade Ocidental, cidade de população pobre, no entorno goiano. Não demorou muito para a desconfiada Vera se encantar pelo destemido Genes. Um ano e meio depois, casaram-se.

Se o casamento é uma parceria para enfrentar a dureza da vida, quando esse percurso é mais pedregoso a parceria parece se fortalecer. Genes e Vera acreditam nisso. "A gente sabe das dificuldades um do outro. A gente não exige do outro o que o outro não pode dar",diz Genes. O embaraço costuma surgir no contato com os não-cegos. Não há dia em que não surja alguém com uma pergunta inconveniente: "Como é que vocês namoram?". Ou, quando o curioso é mais indiscreto: "Como é que vocês transam?" Genes tem uma resposta divertida."Você não fecha o olho para namorar? Não apaga a luz para transar?A gente já vem com a luz apagada." Irritam-se, como de resto todos os deficientes visuais, quando são tratados como deficientes mentais. "A gente não enxerga, mas pensa", comenta Vera.

No mundo dos que enxergam com os olhos do tato, da audição e do olfato, o belo não tem imagem. "Quem enxerga se pega à beleza externa. A interna fica escondida", afirma Genes. Mas nem tudo é desprovido de sentido visual. Genes, por exemplo, adora os cabelos longos de Vera e não gosta de vê-los presos. "Ele adora quando faço escova", diz ela. Depois que encontrou seu parceiro de vida, a moça insegura ficou um pouco menos insegura e agora sabe que pode contar com ele. "Antes eu não ia ao Setor Comercial Sul sozinha de jeito nenhum. Agora, ele me ensinou e já sei ir". Mas é só com o marido que ela atravessa o Eixão, a auto-pista que sustenta as asas Sul e Norte do Plano Piloto. Travessia arriscadíssima até para quem enxerga Mas Vera tem um seu parceiro para vôos mais arriscados.

O casal está tentando ter um filho. Ele já fez todos os exames; ela os têm marcados para esta semana. A gravidez vai depender do grau de toxoplasmose dela e do glaucoma dele. Decidirão pela gravidez caso não haja risco de vida paraa criança. Não temem um filho cego."Não é um olho que faz a gente feliz.Quem não vê pode ser feliz como qualquer outro ser humano", afirma Genes."Conheço um monte de gente ranzinza, reclamona, que vê com os dois olhos." Caso estejam impossibilitados de uma gravidez, eles vão adotar uma criança.

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