domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 8

Jacinto & Marli

Sob o sol em brasa das 10h, na praça principal do Vão de Almas, município de Cavalcante,a 280km de Brasília, um homem surge de uma esquina. Vem escoltado por outros três. Os quatro estão de braços dados uns nos outros como se liderassem uma passeata.Um rapaz jovem, 21 anos, tem os olhos castanhos bem claros. É alto, negro,de músculos bem definidos. O cabelo está cortado de máquina quatro,a nuca muito bem desenhada. Veste terno, gravata e usa óculos escuros.Seus acompanhantes usam camisa e calça social. Atravessam a praça em direção à capela. Entram na igreja singela, centenária, de adobe e amianto, paredes descascadas e trincadas. Ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e voltam as costas para o altar.

Menos de dez minutos depois, da mesma esquina surge uma moça de rosto anguloso, também negra. Está vestida de noiva. Vestido branco até o tornozelo, enfeitado com miçangas prateadas. Dois círculos de arame, como bambolês, deixam a saia bem rodada.Um véu preso por uma grinalda lembra a coroa de uma rainha. A moça usa uma gargantilha de pedras prateadas e reluzentes. Os brincos seguem o mesmo modelo. Nas mãos, um buquê de delicadíssimas rosas cor-de-rosa artificiais. Cada flor é menor que um chiclete babalu e são todas impecavelmente iguais. A mãe e a madrinha acompanham a moça.

Estão todos muito sérios. Há razão para isso. Fazia muito tempo que oVão das Almas não assistia a um casamento de verdade. Com vestido de noiva e padre. "Estou aqui desde 2001e é a primeira vez que venho fazer um casamento", diz o padre Jair FernandesValente, da Diocese de Formosa (GO). É um casamento entre calungas.

O noivo é Jacinto Rodrigues dosSantos, 21 anos, oito irmãos. A noiva, Marli dos Santos Rosa, 19 anos, duas irmãs. A igreja não enche, talvez porque a terça-feira da semana passada tenha sido o dia mais importante da festa doDivino Espírito Santo e de Nossa Senhora D'Abadia, a mais importante data religiosa e festiva dos calungas. "Nunca tinha visto um casamento!",diz a menina para a amiga, as duas correndo para subir no banco de cimento e ver a cerimônia bem de perto.

Os noivos se conhecem desde há muito.São calungas, povo que vive na região há mais de 300 anos. Namoraram durante três anos. Namoro de antigamente, de beijinho e somente só, segundo o noivo, porque a noiva, muito tímida diz quase nada. Os dois são herdeiros da tradição calunga, de moças recatadas diante de seus namorados. Namorados calungas não se beijam em público. Mantêm-se a uma distância respeitosa. Os dois conservam os velhos costumes, porque ela vive até agora na casa dos pais e ele saiu faz pouco para ir trabalhar em Alto Paraíso. Nesse tempo de namoro, passaram até oito meses sem se ver, por conta da dificuldade de acesso ao Vão de Almas. Vale observar que já existem muitos jovens aculturados pelos hábitos mais liberais das cidades.

Foi exatamente o recato de Marlique levou Jacinto a pedi-la em casamento."Ela não é menina de bagunça.Não fuma, não bebe". E tem uma outra grande qualidade. Presta atenção ao que ele diz e é atenciosa com todo mundo. Marli faz a 8ª série e Jacinto só estudou o suficiente para aprender aassinar o nome. Ela acha que 16 anos é idade boa para casar. Portanto, está três anos mais velha do que considera o momento certo para uma moça arranjar marido.

Dona Edivanir, mãe da noiva, é ainda mais tímida do que a filha. Não sabe dizer a idade. Pergunta ao marido, ele sim, senhor da casa e da família. Santana dos Santos Rosa, 47 anos, seu Neco, pai da noiva, imperador da festa do Divino do ano passado e alferes neste ano, diz o que pensa sobre o casamento."Na minha mente, ele tem de andar no direito dele e a mulher tem de andar no direito dela. O marido é o segundo pai da mulher e a mulher é a segunda mãe do marido. Eu conto com ela e ela, comigo". Coube a seu Neco comprar o vestido da noiva e as bebidas da festa. Farta.

O barraco mais parece uma distribuidora de bebidas, tantas as caixas de cerveja, os galões de 4,5 litros de pingae garrafas de 2 litros de tubaína. O sogro de Jacinto conta que no ano passado gastou R$ 3 mil em bebida para os festeiros. "Mesmo que a gente gasta,aceita a emoção de bom coração. Gastei tudo isso, forante o que não contei".Só passada a festa, ele saberia quanto gastou com o casamento da filha.

Depois que o padre perguntou aos noivos se eles aceitavam um ao outro como marido e mulher e se prometiam ser fiéis na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-se e respeitando-se todos os dias de suas vidas, que os dois puseram as alianças, era a hora do beijo. Que não houve. A pesardo estímulo de um convidado branco("beija, beija"), deram-se somente um constrangido abraço. O casamento só se consumará quando, nesta semana, ou na próxima, não se sabe o dia certo. "É quando eles me entregar ela", diz Jacinto. "Hoje você recebe a sua mulher",dirá o sogro, segundo palavras do genro. Jacinto diz que já teve experiências sexuais. "Não ia casar mesmo, aí dormia junto".

Jacinto trabalha numa chácara em Alto Paraíso. Faz serviço de roça. Tem planos de construir uma casa, comprar umas cabeças de gado. Não sonha com um carro. "Se quebrar as peças, é muito caro, não dou conta de arrumar".Até aos 10 anos, ele nunca tinha visto um ser humano de outra cor que não a sua. "Pensei que só existia gente de cor normal". Assustado, perguntou ao pai: "Aquele povo ali é de onde?". O pai respondeu: "É de nascença. Tem gente de toda cor no mundo".

Aos 15, entrou num carro pela primeira vez. "Pensei que a Terra estava rodando. A hora que apeei, fiquei tonto".Agora que sabe que o mundo é mundo maior que o universo mítico dos calungas, Jacinto quer uma vida um pouco melhor do que a de seu povo."O pai contou que branco batia no preto, fincava o chicote, punha arame na cabeça, mandava fazer cerca de pedra no meio da serra. Agora não está muito bonzão, tem de melhorar mais um pouco".Foi atrás dessa melhora que Jacinto se juntou a Marli. De dois talvez seja mais fácil.

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