domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 10

Doéthiro & Kokoi


Ele é filho de um pajé e um pajé portanto será. Ela foi criada para ser uma guerreira, apesar de que na sua tribo guerreiros são os homens. Ele é filho do povo Tukano. Ela, do povo Kaingáng. Ele nasceu no extremo norte do país. Ela, no extremo sul. Álvaro Tukano, 53 anos, e Rosane de Mattos, presumíveis 39, são marido e mulher, sem papel passado. (Rosane não sabe a idade ao certo porque seu povo contava o tempo de vida pelos nós da taquara. O escrivão que atendeu a mãe dela não conseguiu entender direito a matemática kaingáng. Aí, ela talvez tenha 39, um pouco mais ou um pouco menos).

Estivessem ainda no exclusivo mundo de suas aldeias, seriam Doéthiro e Kokoi, seus nomes de índio. Desde a juventude, eles se integraram à vida nas cidades. Com um objetivo: o de lutar pelo seu povo. Foi isso que os uniu há 14 anos. Uma união de idas e vindas, de embates, acertos e desacertos, com as mesmas dificuldades das relações entre não-índios. Com uma diferença essencial: os dois têm um único e mesmo projeto de vida que sustenta o casamento, o da preservação de seus povos.

Conheceram-se na Eco 92. Aquela foi a primeira vez que Kokoi rompia as fronteiras do Rio Grande do Sul. Não tinha sido fácil. O avô não havia gostado muito da idéia de ver a neta deixar a aldeia para aventurar-se na cidade grande. Parecia que ele tinha outros planos para a neta. Desde bem cedo, a ensinou a fazer negócios com os brancos, a vender artesanato, a fazer escambo. Colocou-a para guerrear com outra índia, ensinamento até então restrito aos homens. O cacique Pedro Koprãn talvez a tenha ensinado demais, ele mesmo pode ter pensado. Um dia Kokoi disse que queria estudar fora. O avô então lhe disse que só permitiria se tudo o que ela aprendesse se revertesse para o seu povo. E se ela se casasse com um brancoou se desaprendesse a sua língua deixaria de ser sua neta.

Tão forte herança de seu avô levou Kokoi às lutas pela demarcação das terras e pela resistência das nações indígenas ao avanço devastador do homem branco. O respeito às suas origens, ensinado com tanto vigor pelo cacique Koprãn, fez Kokoi se aproximar de Doéthiro. Durante a Eco 92, representantes de boa parte das nações indígenas do Brasil reuniram-se no Rio de Janeiro para expressar suas reivindicações ao mundo. Só ali, Kokoi soube que havia uma imensidão de povos nascidos em território brasileiro muito antes de essa terra se chamar Brasil. Àquela altura, Doéthiro já era um líder das causas indígenas. Sua experiência, seus conhecimentos, sua articulação com outros povos, com as lideranças indígenas ou não atraíram Kokoi, a neta guerreira de Koprãn.

A história de Doéthiro contém um pedaço significativo da história das lutas dos povos indígenas no Brasil recente. Nascido numa aldeia à margem do rio Pari-Cachoeira, afluente do Negro, no Amazonas, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, foi catequizado por missionários salesianos. Estudou em escolas salesianas até chegar a Manaus, aos 21 anos, e descobrir que por trás de tudo o que aprendera havia um país real do qual jamais tinha feito idéia. Era 1974, auge da ditadura. Doéthiro teve notícia das atrocidades cometidas pelos militares, experimentou sua condição de índio e, portanto, de vivente invisível na cidade de Manaus. E descobriu que havia pelo país centenas de outros povos indígenas, coisa que nunca lhe haviam ensinado na escola.

"Sou um sobrevivente", diz ele hoje depois de tantos anos de briga, que incluiu um depoimento ao Tribunal de Roterdã, na Holanda, que investigou e julgou genocídios e etnocídios cometidos contra os índios no planeta. Participou da criação da União das Nações Indígenas do mesmo modo que Kokoi ajudou a organizar o primeiro encontro das mulheres indígenas do país. Os dois são hoje funcionários graduados da Funai. Moram em Brasília, num apartamento funcional, junto com três filhos de Doéthiro (Joana, 4, Álvaro Cesár, 5, Lula, 16) e um irmão dele, Natanael, 19, todos Tukanos. Álvaro teve nove filhos, todos fora da união com Rosane. Ela não pode ser mãe e ele quer garantir a permanência de seu povo sobre a Terra. É Kokoi quem explica isso. E somente isso. Há entre eles um respeito à própria privacidade que aos brancos do mundo moderno e impudico pode soar estranha.

Criada para ser guerreira, Kokoi tem de lidar com o machismo, aos olhos dos brancos, dos Tukanos e, diz ela, de boa parte dos povos indígenas, para os quais a mulher deve submissão ao homem. São dois povos distintos, como de resto são distintos os povos indígenas, tão diferentes entre si quanto um brasileiro de um egípcio ainda que o senso comum passe a idéia de que se são índios são todos iguais. É com essa diferença de costumes, de língua, e o respeito que cada um tem pelas suas origens que transforma a união de Kokoi e Doéthiro num exercício de companheirismo, tolerância e paciência.

Kokoi quer dizer beija-flor, na língua Kaingáng. Doéthiro é o nome do primeiro homem do mundo, na cosmogonia Tukana. Coube ao primeiro Doéthiro gerar filhos e filhas para dar início à gênese dos clãs. Ele dominava o mundo e nomeava todos os seres. Foi ele quem construiu o barco que trouxe todo o seu povo para o novo mundo, enfrentando o perigo dos altos mares até chegar ao novo continente. O Doéthiro de hoje passa adiante a histór ia mítica de seu povo. E Kokoi segue ao lado dele, às vezes passarinho, muitas vezes guerreira.

Um comentário:

Silvia VC disse...

que historia maravilhosa...pareceria tão irreal ou ate superficial...se um destes personagens não fosse meu conhecido de longa data: Alvaro Tukano! obrigado por colocar tanta poesia em suas vidas!abraços.