domingo, 26 de agosto de 2007

Amores Possíveis 2

Babi & Emanuel

Então Babi tomou o caderno das mãos de Emanuel, encostou-se numa parede ao lado. Ela em pé. Ele sentado no banco da escola. Era com implicância que se mantinham um perto do outro, todos os dias, implicantemente. Com a mesma birra infantil, ela lia os poemas sem dar bola para os apelos dele, que pedia: "Me devolve", "me devolve". (Emanuel é surdo, mas fala, foi oralizado. Aprendeu as palavras sentindo a vibração das cordas vocais).De repente, Babi parou, olhou para Emanuel e desvendou um bom pedaço de sua alma, da solidão de um humano que nasceu com um sentido a menos, o da audição. Ali acabou a cisma. Emanuel entendeu só de olhar no olho dela.

Desse diai em diante, tomaram o rumo da amizade. Já fazia dois meses que eles brincavam de ter antipatia um pelo outro. Brincadeira misturada com verdade, não sabiam bem ao certo, mas isso nem os incomodava, porque de todo modo era bom estar ao lado um do outro, coisa que eles também não se davam conta.

Cinco meses antes, eles tinham se cruzado e ela tinha odiado ele, e ele tinha achado ela "gorda, feia, que se acha". Foi assim: Babi tinha um amigo muito próximo cuja namorada morria de ciúmes dela. Insistia em conhecê-la, mas o encontro nunca dava certo. Até que a namorada ciumenta terminou o namoro. O moço abandonado pediu ajuda a Babi: "Vamos lá na casa dela, diga a ela que não temos nada, somos só amigos". Foram e quem os recebeu? Emanuel, irmão da ciumenta.

Nas três vezes em que o namorado abandonado procurou a ex-namorada, Babi sempre ao lado, foram recebidos por Emanuel, com seu jeitão sério, sua voz grossa e rouca, suas poucas palavras. De todas as vezes, Babi o odiou. "Esse cara não fala, troveja", disse ela para o amigo. (Até então, ela não sabia que ele era surdo).

Três meses mais tarde, início do ano letivo de 2000, Escola Técnica de Brasília, período noturno, 4º semestre do curso de informática industrial, turma B. Esbaforida e atrasada, Babi entra na sala de aula. Senta-se na primeira cadeira. Logo está brincando com a caneta entre os dedos, malabarismo de garota buliçosa. Minutos depois, percebe que o estranho a seu lado começa a fazer os mesmos movimentos, numa imitação implicante e inexplicável. Era Emanuel que, movido por um impulso desconhecido, decidiu atazanar a recém-chegada. Já tinham se visto, mas não se reconheceram. (Ou se reconheceram, sem saber. Nunca se sabe). Daí pra frente, provocavam-se todas as noites.

Até o dia em que Babi tomou o caderno de Emanuel e leu seus poemas. Ela acreditava que eles eram somente amigos. Ele percebia em si mesmo o desejo de um homem por uma mulher. Sempre juntos no meio da turma, mas sem nunca deixar de implicar um com o outro — um jeito sem jeito de dizer ‘você me interessa’, ‘estou te vendo’, ‘preste atenção em mim’. Nem ligavam para o que dizia a porteira da escola, Cida: "Isso ainda vai dar em namoro". Uma colega de turma também já tinha percebido algo mais entre o céu e a terra: "Vocês se tocam demais".

Chegou o carnaval. Babi foi para um retiro espiritual. Um dos exercícios finais era escrever uma carta a alguém querido para lhe dizer coisas que a gente sempre deixa para depois, mas muitas vezes o depois nunca chega. Babi nem precisou pensar. De relâmpago, escolheu Emanuel. Pôs no papel: que havia percebido que gostava muito dele, que pedia desculpas pelas brigas, que sentia muito a falta dele… Mas preferiu escrever outras três cartas para outros três amigos, de modo que a escolha não parecesse tão flagrante.

Boba dela, porque Emanuel percebeu que ali havia terreno para o amor. Porém, foi sábio. Não teve pressa. Foi se aproximando aos poucos. Nem precisou de muito esforço, é verdade. Os apaixonados ou os a caminho disso estão imantados — ímã atraindo um para o outro a todo instante, longe ou perto. Houve um dia de trabalho em grupo que os dois se juntaram a uma turma maior, seis ou oito, não se lembram ao certo. Sentaram-se numa longa fila horizontal, paralela ao quadro-negro e ficaram coladinhos um no outro, carteira com carteira. Mais coladinhos que o normal. A carteira para canhotos onde Emanuel se sentava deixava sua perna livre para se encostar por inteiro na perna da destra Babi.

Já era namoro, mas eles ainda não sabiam disso. Até que uma noite, tacitamente, os dois ficaram na sala de aula. Emanuel já tinha decidido abrir o jogo. "Eu sabia que, se demorasse mais, perderia a oportunidade. Mas se eu fosse muito rápido, ela ia sair correndo. Pensei: vou me aproximar. Se ela me empurrar, nunca mais falo com ela. Se ela disser que não, continuamos amigos. E se ela deixar…" Brincavam de jogo-da-velha. Babi fazia a sua jogada no quadro-negro, quando Emanuel foi-se aproximando vagarosamente. Olho no olho. Quando o corpo dele estava a palmo e meio do corpo dela, Babi olhou para a porta de saída, à direita. Rapidamente, ele pôs a mão no quadro, linha paralela ao chão, fechando assim as possibilidades de fuga. Babi olhou para a direita, Emanuel pôs o outro braço. Pronto, a moça estava cercada, contida, dominada, sem saída. Ele então aproximou-se até encostar seu corpo no dela. Não havia mais saída, nem ela queria. Abraçaram-se, beijaram-se.

Era uma sexta-feira. Não se viram no final de semana. Na segunda, Babi não sabia como se comportar. E se tivessem somente ficado? Hoje, Emanuel indigna-se com a dúvida: "Se eu quiser ficar com alguém, fico com objeto. Se eu quiser uma coisa pra me satisfazer, vou a uma padaria e compro". (Ah, meninas, vejam como Babi é uma moça de sorte).

Bárbara Angélica de Jesus Barbosa tem 28 anos. Joaquim Emanuel Leitão Barbosa, 26. Ele é programador de computador. Ela, técnica publicitária e intérprete de libras. São estudantes universitários, ela, de Letras-Tradução, ele, de Sistemas de Informação. Babi aprendeu a linguagem dos sinais para ser intérprete do marido quando ele não consegue decifrar a linguagem labial. Conversam o dia inteiro pela internet — já que ele não usa o telefone. Com ele, ela aprendeu a ouvir, a aceitar melhor as diferenças, a ter paciência com o outro. Ele encontrou a mulher que o enxergou por inteiro, até no que a surdez escondia.

A aliança dos dois tem inspiração medieval: uma trança de dois fios de ouro em fino leito também de ouro. A qual será acrescentado um fio a cada cinco anos. Ele a protege com seu coração de homem e ela, com seu coração de mulher. Parece fácil e óbvio, mas não é.

2 comentários:

Unknown disse...

Que história incrível!O amor supera até as coisas mais improváveis.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.